Na decisão em que sustenta que a Justiça do Trabalho deve ter autonomia para discutir questões como a pejotização e ordena a continuidade do julgamento de uma ação sobre o tema, a desembargadora Vânia Maria Cunha Mattos, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RfS), fez uma defesa contundente da Justiça do Trabalho.
A juíza, que foi presidente do TRT4 no biênio 2017-2019, notou que não raro o ramo da Justiça em que atua é alvo da hostilidade das “camadas mais conservadoras da sociedade, que defendem a sua extinção”.

Hoje, em sua opinião, “vivenciamos uma tentativa de reduzir a competência constitucional”, o que está inserido numa ofensiva mais ampla, capitaneada pela extrema direita, que tem por objetivo a destruição do Direito do Trabalho, o que chegou a ser anunciado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro ao formular um falso dilema: “o trabalhador terá de escolher entre ter direitos ou ter emprego.

Proteção do trabalhador

Produzidas pelas lutas da classe trabalhadora, as leis trabalhistas foram criadas para proteger o empregado na relação com o patronato, regulando e limitando a jornada de trabalho, assegurando o descanso semanal remunerado, o 13º Salário, férias, PLR e outros benefícios, que no nosso caso estão previstos na CLT e desaparecem com a pejotização.

O desrespeito às leis trabalhistas é quase uma regra no meio empresarial. A Justiça do Trabalho foi criada para fiscalizar e garantir o respeito à Lei reconhecendo antes de mais a hipossuficiência do trabalho na relação com o capital.

“Lidamos diuturnamente com a camada mais sensível da sociedade, os empregados, ou melhor dizendo, as pessoas que na maior parte das vezes perderam a sua própria fonte de sobrevivência e da sua família”, comentou a desembargadora.

“Estamos imersos na infortunística do trabalho - empregados ou não -, que sofrem acidentes de trabalho, não raro, com mutilações graves”, acrescentou. “Sem falar em todos os que perderam a expectativa das suas vidas em decorrência da realização de trabalho inseguro, ou mesmo de risco efetivo e punidos com a morte”.

Combate ao trabalho degradante e escravo

A superexploração da força de trabalho é uma marca indelével do capitalismo brasileiro, refletida não só nos baixos salários (cerca de 70% dos trabalhadores e trabalhadoras ganham até 2 salários mínimos), mas na ânsia irrefreável do patronato à precarização.

“Convivemos com trabalhos degradantes, em péssimas condições e até mesmo com trabalho escravo ou em condição análoga a de escravo, em pleno Século XXI, neste Estado [NR: Rio Grande do Sul] tido como um dos mais evoluídos e culturalmente avançados em relação ao restante do país”, enfatizou Vânia Mattos.

“No entanto”, complementou, “toda essa complexa, dura e difícil realidade nunca nos impediu de ir em busca da Justiça e de exercitar plenamente a jurisdição, até porque essa é a razão do nosso destino, para que cada dia não seja desperdiçado e seja capaz de concretizar todos os nossos objetivos”.

Ofensiva conservadora

De acordo com a desembargadora, “a Justiça do Trabalho, graças ao seu dinamismo, tem a capacidade de se reinventar, mas sem perder o norte, como uma Justiça que prima por manter o equilíbrio das relações entre o capital e o trabalho”.

Apesar disto, “não raro, de tempos em tempos é atacada por camadas mais conservadoras da sociedade, que defendem a sua extinção, como se isto fosse possível ou que, com essa perspectiva, estariam eliminados todos os conflitos entre o capital e o trabalho”.

“Hoje”, denunciou, “vivenciamos uma tentativa de reduzir a competência constitucional - artigo 114 da Constituição Federal, com o alargamento implementado pela Emenda Constitucional nº 45, de 08.DEZ.2004, que, inclusive, ampliou a nossa competência não só para a instrução e julgamento dos acidentes do trabalho, mas principalmente para a execução das contribuições previdenciárias e fiscais, o que tornou a Justiça do Trabalho fonte arrecadadora de milhões de reais a cada ano, em favor da previdência social e do fisco, exclusivamente, com a estrutura da Justiça do Trabalho e que muito dificilmente será suplantada em algum momento do tempo e do espaço por outra Justiça”.

Constituição Cidadã

Leia abaixo outros trechos da sentença elaborada pela magistrada gaúcha:

“A tentativa atual de redução da competência da Justiça do Trabalho, ou até mesmo o seu esvaziamento paulatino pela interveniência de setores que objetivam, possivelmente, uma ainda maior precarização do trabalho e do emprego, viola frontalmente a Constituição Federal.

“Muito ao contrário do que apregoam, a Justiça do Trabalho é a única Justiça a quem cabe julgar os conflitos entre o capital e o trabalho, e faz parte da sua competência decidir se há ou não vínculo de emprego.

“No mínimo, as nossas decisões devem ser respeitadas, em especial, porque temos uma produção teórica e jurisprudencial que ultrapassa muito mais de oito décadas, com capacidade plena de interpretar e regular, inclusive, as novas formas de trabalho que surgem ao longo do tempo.

“E, sem dúvida, é a única Justiça que produz normatização coletiva, ou seja, a interação entre sindicatos de empregados e de empregadores, que estabelecem diversas condições de trabalho no âmbito das categorias profissionais e econômicas, como fonte de direito coletivo, e que se refletem nos contratos individuais de trabalho.

“O atual surgimento de novas fontes de trabalho, por meio das plataformas e aplicativos digitais dos mais diversos serviços, exige uma regulação mínima para que não haja retrocesso social e nem se incorpore no cotidiano das relações a inexistência de qualquer normatização. Deve haver, necessariamente, um contexto moderno de regulação, porque, sem dúvida, esse é o futuro que se introduziu, emergente dos mais diversos fatores, e que dificilmente será eliminado.

“A coexistência dessas novas formas de trabalho, que surgiram graças à tecnologia, ao desenvolvimento da informática e à interligação do mundo pela internet e pela dinâmica das relações entre os novos atores - que significam capital e trabalho - exigem um novo tipo de abordagem e regulamentação, até porque os nossos parâmetros não resolvem este tipo de relação, muito distante do trabalho pessoal, oneroso e subordinado, estabelecido nos anos quarenta do Século XX pela CLT.

“Nesta perspectiva, os processos deverão ter a sua tramitação regular e célere como expressão dos princípios próprios do Direito do Trabalho”, razão pela qual ela ordenou a continuidade da ação de pejotização no âmbito da Justiça do Trabalho, uma vez que havia sido suspensa na primeira instância.