A suspensão do julgamento de ações contra a pejotização pelo ministro Gilmar Mendes, do STF, é considerada uma afronta à Justiça do Trabalho e vem sendo contestada por muitos integrantes deste ramo da Justiça que é hoje alvo de uma forte ofensiva das forças conservadoras, teve suas competências reduzidas pela reforma trabalhista e corre o risco de ser extinta ou tornada irrelevante. A determinação da desembargadora Vânia Mattos, narrada na reportagem abaixo, reflete a crescente indignação contra a decisão monocrática e arbitrária de Mendes, que pode se desdobrar num golpe mortal contra o Direito do Trabalho e, por extensão, a Justiça do Trabalho. O trabalhador pejotizado é um trabalhador sem direitos:
Por Martina Colafemina*
A Justiça do Trabalho deve ter autonomia para discutir questões como a pejotização. Com esse entendimento, a desembargadora Vânia Maria Cunha Mattos, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS), deu prosseguimento a ações trabalhistas que tratam do tema, mesmo com a ordem do Supremo Tribunal Federal para suspender todos os processos sobre o assunto.
O caso analisado trata de dois processos ajuizados por um trabalhador contra duas empresas diferentes, que tratam de pejotização. Ele pede o reconhecimento do vínculo de emprego com as duas e indenizações por um acidente de trabalho.
Constituição violada
A ação foi suspensa já na primeira instância, após a determinação do ministro Gilmar Mendes, do STF, de paralisar processos que tratem de pejotização, dentro do Tema 1.389 da repercussão geral. O tema discute se a Justiça do Trabalho pode julgar casos em que se suspeita que um contrato de prestação de serviço foi, na verdade, uma fraude para esconder uma relação de emprego, se é legal contratar alguém como autônomo ou via pessoa jurídica e quem deve provar que houve fraude (trabalhador ou empresa).
O homem recorreu com um mandado de segurança, pedindo para desfazer a suspensão dos processos. Ele alegou que o trancamento das ações viola seu direito de ter um processo julgado em tempo razoável. A desembargadora concordou com o autor e decidiu que as ações voltem a tramitar normalmente.
“A tentativa atual de redução da competência da Justiça do Trabalho, ou até mesmo o seu esvaziamento paulatino pela interveniência de setores que objetivam, possivelmente, uma ainda maior precarização do trabalho e do emprego, viola frontalmente a Constituição Federal. Muito ao contrário do que apregoam, a Justiça do Trabalho é a única Justiça a quem cabe julgar os conflitos entre o capital e o trabalho, e faz parte da sua competência decidir se há ou não vínculo de emprego. No mínimo, as nossas decisões devem ser respeitadas, em especial, porque temos uma produção teórica e jurisprudencial que ultrapassa muito mais de oito décadas, com capacidade plena de interpretar e regular, inclusive, as novas formas de trabalho que surgem ao longo do tempo”, assinalou a magistrada.
Repercussão da decisão
Para especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, houve quebra de hierarquia, já que a desembargadora não poderia ter prosseguido com a ação. Outros entrevistados apontam, no entanto, que o tema discutido no processo não foi influenciado pela decisão de Gilmar.
“A decisão no mandado de segurança configura um grave equívoco. Cabe novamente uma reclamação ao STF. Havia uma suspensão decorrente — corretamente — da decisão do STF. Essa decisão não pode ser desobedecida. É vinculante. Cabe reclamação disciplinar ao Conselho Nacional de Justiça. Uma coisa é o juiz decidir nos limites do decidível. Outra é contrariar, deliberadamente (ela diz não concordar com o STF) uma ordem do STF. Quem decide o MS confessa que o fez porque discorda do STF. Não há espaço no sistema brasileiro para isso. Quanto a precedentes: não há um sistema. Mas, segundo o Código de Processo Civil, qualquer decisão do STF em controle concentrado (e reclamação é) é vinculante. Logo, não pode ser desobedecida”, salienta o jurista Lenio Luiz Streck.
Para o professor Georges Abboud, o descumprimento de decisões do STF por juízes contribui para a quebra da coesão do Poder Judiciário.
“No desenho atual do processo brasileiro, a grande maioria das decisões do STF produz vinculação imediata, seja pelo procedimento, seja pelo argumento, até mesmo porque compete a ele fixar em última instância, dentro do Judiciário, o sentido das disposições constitucionais. Nem mesmo uma discordância argumentativa poderia justificar a não aplicação de um precedente do STF, até mesmo porque somente a corte é a juíza natural da superação de seus próprios provimentos, o que significa dizer que somente ela pode analisar, de modo eficaz, novos argumentos e contrastá-los aos anteriores para a produção de novos paradigmas vinculantes.”
“No caso em tela, a afirmação peremptória de que ‘meu posicionamento é absolutamente contrário à decisão do STF’, feita para afastar a aplicação de tema de repercussão geral — formalmente vinculante —, demonstra um comportamento de inversão da hierarquia judiciária e, portanto, de subversão da sua lógica de funcionamento. Nesse cenário, juízes que, de forma deliberada, descumprem decisões do STF, contribuem para a deterioração da democracia constitucional e acabam por incentivar os espectros extremistas que fazem da transformação do STF inimigo ficcional sua principal arma política”, completa Abboud.
“A conhecida resistência de alguns magistrados gaúchos acaba por validar a premissa de que parte o STF para restringir a competência material da Justiça do Trabalho”, aduz Gáudio Ribeiro de Paula, especialista em Direito do Trabalho.
Duas questões distintas“
Há duas questões distintas: a recalcitrância injustificável da magistrada, que pode atrair até mesmo sanções disciplinares (corregedoria ou CNJ); e o equívoco do STF em retirar a competência da Justiça do Trabalho, o que não pode ser objeto de resistência por parte dos juízes, mas pode (e deve) ser academicamente debatido”, afirma Ribeiro de Paula.
Para o ministro Alexandre Agra Belmonte, do Tribunal Superior do Trabalho, “determinação de instância superior é para ser cumprida”. Ele no, entanto, faz uma ressalva à discussão: “Posso, no entanto, dizer que só é empresário quem tem um negócio próprio. Quando, na realidade, trabalha sob dependência econômica para outro, segundo regras invariáveis, com certeza não se trata de PJ, e, sim, de trabalho pessoal”.
Jorge Luiz Souto Maior, professor livre-docente de Direito do Trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (interior de São Paulo), diz que o tema abordado pela desembargadora não foi afetado pela decisão do ministro Gilmar Mendes.
“Não há qualquer contrato escrito de prestação de serviços entre as partes, especificando a natureza autônoma do trabalho executado”, afirma.
Para o advogado Ricardo Calcini, sócio-fundador do Calcini Advogados e professor do Insper, “a tramitação dos processos envolvendo pejotização é também de interesse de todos os atores envolvidos (partes e advogados), razão pela qual, se não for impugnada por nenhum dos litigantes, é defesa a sua paralisação de ofício”.
“Como a prova na Justiça do Trabalho é eminentemente testemunhal, se não foram tomadas as medidas judiciais cabíveis em tempo e modo, por certo que tal prova terá o seu conteúdo esvaziado, afinal, embora a expectativa do STF seja de que o Tema 1389 será julgado no próximo semestre, isso não é uma realidade que se observa de outros assuntos trabalhistas que foram julgados pela Suprema Corte”, afirma Calcini.
Mobilização pela competência
Os representantes da Justiça do Trabalho têm se mobilizado pela autonomia em decidir sobre a pejotização e outros temas, contrariando decisões do Supremo.
O Sindicato dos Trabalhadores da Justiça Federal do Rio Grande do Sul (Sintrajufe-RS) organizou, no último dia 7, uma manifestação nacional em defesa da competência da Justiça do Trabalho, em Porto Alegre.
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MS 0025079-71.2025.5.04.0000
*Martina Colafemina é repórter da revista Consultor Jurídico