Uberização no trabalho é 'aceitar o péssimo para que não fique horrível', aponta especialista em entrevista ao Brasil de Fato. Jornadas extensas, baixa remuneração, ausência de direitos e a submissão a algoritmos são rotina para trabalhadores uberizados Eugênio Bortolon para o Brasil de Fato-Porto Alegre (RS) Cássio Calvete é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), pós-doutorando na Universidade de Oxford, Inglaterra, e um estudioso e pesquisador permanente da história do mercado de trabalho brasileiro. Nesta entrevista ao Brasil de Fato RS, ele analisa a situação do avanço da uberização no trabalho e considera que o uso de aplicativos é uma saída para ‘baixo’ para o desemprego. Defende a regulamentação através da construção social negociada para distribuir melhor os ganhos e minimizar as perdas. Calvete analisa também as queixas dos trabalhadores, as jornadas extensas, a baixa remuneração, a ausência de direitos e a submissão das pessoas a algoritmos não transparentes. Diz que a hora de mudar este cenário é, agora, com o novo governo e as promissoras novidades da economia brasileira. “Acho que mais do que nunca a regulamentação destas atividades precárias é agora. O país precisa criar segurança jurídica para que os trabalhadores tenham direitos e sejam respeitados”. Confira: Brasil de Fato RS: A uberização do mercado de trabalho é a saída para evitar o desemprego? Cássio Calvete: Definitivamente, não. A sociedade não pode se conformar com a precarização e a informalidade como um mal menor ao desemprego, porque essa “saída” cria um círculo vicioso que só leva a mais informalidade e precariedade no mercado de trabalho. É a saída do desemprego por baixo, pelo rebaixamento das condições econômicas e sociais que nos levará ao círculo vicioso, e paradoxal, de continuamente ter que piorar as condições de trabalho para que elas não fiquem piores ainda. É aceitar o péssimo para que não fique horrível. Mas que, no entanto, só vai piorando a situação. A única saída é regulamentar e, mais do que viável, é absolutamente necessário Não se trata de negar os ganhos e as vantagens que o avanço tecnológico traz para os consumidores e para a sociedade. No entanto, é preciso ter ciência que a não regulamentação ou a forma de regulamentação que será adotada são escolhas políticas e não técnicas e que, portanto, para cada forma como a utilização da tecnologia será regulamentada resultará um tipo de distribuição dos ganhos e das perdas. Esses ganhos poderão ser apropriados majoritariamente pela sociedade, pelos trabalhadores, pelos consumidores ou pelas grandes empresas monopolistas. O resultado final será definido através da luta de classes, portanto uma construção política da distribuição dos ganhos e das perdas. Só uma construção social negociada e uma regulamentação legal podem distribuir melhor os ganhos e minimizar as perdas. Mesmo com raros, ou nenhum direito para o trabalhador, a saída é regulamentar. Mas isso é viável no atual momento econômico do país? A única saída é regulamentar e, mais do que viável, é absolutamente necessário. O discurso dominante tenta fazer crer que a regulamentação é algo ruim porque ela é feita de forma burocrática e engessada por leis, pelos políticos que não entenderiam do tema. Enquanto a não regulamentação ou a flexibilidade seriam boas porque conformaria o mercado de trabalho de forma mais adequada à utilização da tecnologia, como se a tecnologia fosse um deus ex machina que produz a solução ideal para as relações trabalhistas. No entanto, a realidade, é que a regulamentação significa a formulação de normas e leis discutidas pelos representantes eleitos pela população que, provavelmente, farão uma profunda discussão do tema e levarão em conta os interesses de toda a sociedade na forma de utilização das tecnologias no setor produtivo. Por sua vez, a não regulamentação deixa a utilização da tecnologia ocorrer ao bel prazer das empresas que a implementarão de forma discricionária visando unicamente satisfazer os seus interesses. A tecnologia está se sobrepondo aos interesses dos trabalhadores, está provocando uma luta de “classes”? Não podemos e não devemos cair no determinismo tecnológico. A tecnologia não determina nada e não impõe nada. A inteligência artificial e os algoritmos não pensam, não definem e não dão as sequências. O ser humano é o responsável pela forma de organização do processo de produção, pela sequência adotada nos algoritmos, pela forma de regulação das relações de trabalho, pela forma de organização da sociedade e, também, o mais importante de todos, pelos valores que serão cultivados e apreciados. Os salários estão diminuindo, os tempos de trabalho se tornando ainda mais extensos, mais intensos e mais flexíveis Novamente, mais uma vez e sempre, a luta de classes está colocada. Os detentores do capital aproveitam as novas possibilidades de organização do processo de produção, colocadas pelas inovações tecnológicas, e criam “novos” vínculos, “novas” regras, “novos” fetiches para aprofundar a exploração do trabalho e a extração de mais-valia. Agora sob a égide do capital financeiro mais fluído, mais efêmero e mais flexível, apenas a extração da mais-valia através da intensificação do ritmo de trabalho não aplaca a fúria do capital. Volta à tona a superexploração dos primórdios do capitalismo com a elevação significativa, também, da extração da mais-valia através do aumento da extensão do tempo de trabalho. Os salários estão diminuindo, os tempos de trabalho se tornando ainda mais extensos, mais intensos e mais flexíveis para serem utilizados nas horas, turnos e dias que os donos do capital assim requererem. Neste momento histórico contemporâneo de inovações, o capital busca a ruptura do ordenamento jurídico e social. Após um primeiro momento de uma luta defensiva dos trabalhadores ligados ao Movimento Sindical e ao mercado formal de trabalho, e um vislumbre de possibilidade de um trabalho digno nas plataformas digitais, já vemos uma grande mobilização dos trabalhadores (não esqueçamos que, nos seus primórdios elas se vendiam como sendo de economia do compartilhamento e proporcionavam uma boa remuneração a quem participasse). Os trabalhadores estão se dando conta agora que há muita exploração das plataformas? Podemos utilizar a expressão popular que “só agora a ficha caiu”. Os trabalhadores plataformizados (motoristas de uber, entregadores de motos ou bicicletas, trabalhadores em microtarefas) perceberam que estão sendo superexplorados. Trabalham jornadas extensas, recebem baixíssima remuneração, não têm direitos e estão submetidos a uma remuneração definida por algorítmicos não transparentes. Assim, trabalhadores de todo o mundo manifestam descontentamento e indignação com suas condições de trabalho e começam a se organizar e se manifestar por meio de ações diretas, greves, protestos e ações judiciais. No entanto os problemas gerados pela gerência algorítmica e pela inteligência artificial não se restringem a afetar apenas os trabalhadores platafomizados. Muitas ocupações, mesmo que ainda recentes, já têm uma enorme quantidade de estudos desvelando os mais diferentes problemas nas mais diferentes áreas do conhecimento (Psicologia, Sociologia, Direito, Medicina, Engenharia, Economia, entre outros), E, portanto, já tem seus impactos bem conhecidos e, em muitos países, inclusive, regulados por legislação, como por exemplo os motoristas de aplicativos, entregadores de aplicativos com motos e bicicletas e trabalhadores em microtarefas. No entanto, muitas outras novas ocupações seguem com suas relações trabalhistas e impactos pouco estudados. Esse é o caso de criadores de conteúdos, youtubers, influencers, moderadores de conteúdo, identificadores de imagens, trabalhadores em Centros de Distribuição e muitos outros que são gerenciados através de algoritmos e inteligência artificial. Dessa forma, para todos os casos é necessário que nos debrucemos para conhecermos melhor os impactos perversos. Até que ponto as tecnologias estão interferindo nas relações trabalhistas? Dada a multiplicidade de casos, de formas de gerenciamento e de impactos, poderíamos partir de direitos básicos que já foram discutidos exaustivamente na sociedade e vigoraram por muito tempo como sendo quase consensuais. Faço referência as normas civilizatórias das relações de trabalho que garantem um salário mínimo para todo trabalhador, direito a férias, direito a uma jornada de trabalho não muito extensa, direito à aposentadoria e seguro saúde e acidente do trabalho. Direitos esses que são reconhecidos na Constituição brasileira e nas Resoluções da Organização Internacional do Trabalho - OIT. Mas podemos, e devemos ir além, e tratar dos problemas “novos” que essa tecnologia vem inserindo nas relações trabalhistas: o direito à privacidade, o direito à desconexão, o direito à transparência das informações coletadas pelos softwares, o direito à simetria de informações, o direito a não ser constantemente vigiado no local de trabalho pelos “softwares” que acaba impactando na dignidade do trabalhador e também o direito a não ser manipulado pelos “softwares” com os dados que ele coleta do próprio trabalhador. Acredito que esses problemas citados são comuns, em seu todo ou em parte, a todos trabalhadores gerenciados por algoritmos e inteligência artificial sejam eles plataformizados, informais ou mesmo trabalhadores formais. A situação da economia do Brasil, neste momento, poderia facilitar a regulamentação do trabalho uberizado? Afirmo que o momento econômico é mais que oportuno. A economia brasileira nesse ano de 2023 experimentará uma variação positiva no PIB, a regulamentação das relações trabalhistas cria uma segurança jurídica e melhora as condições de trabalho e renda dos trabalhadores. Ainda ajuda na criação de um ciclo virtuoso de aumento de renda, aumento de consumo e aumento de investimento. Também podemos citar que relações de trabalho mais saudáveis e humanizadas irão gerar mais postos de trabalho e aumentar a produtividade de cada trabalhador, o que será benéfico para a economia como um todo. Relações de trabalho mais saudáveis e humanizadas irão gerar mais postos de trabalho e aumentar a produtividade de cada trabalhador Grupos de trabalhos para solucionar a uberização resolvem? Ou o mundo caminha inexoravelmente para este tipo de mercado flexível de trabalho? Sim, podem resolver e, particularmente, acredito que seja o melhor caminho para achar as melhores construções sociais para esse novo desafio. Em todos os períodos em que ocorreram os booms tecnológicos, os capitalistas tentaram aproveitar a introdução das novas tecnologias no processo produtivo, que obviamente impõem uma nova relação técnica para a produção, para precarizar as condições de trabalho, principalmente com redução salarial e extensão e intensificação do tempo de trabalho. Na Quarta Revolução Industrial não é diferente. Ela se caracteriza por uma particular conjunção de fatores: inovações tecnológicas, desmonte do Estado de Bem-Estar Social, reforma trabalhista, financeirização e hegemonia do pensamento neoliberal que atuam para precarizar as condições de trabalho, e aumentar a extração de mais-valia. Enquanto nos dois estágios anteriores (Fordismo e Toyotismo) a busca pelo aumento da extração da mais-valia* tinha suas atenções voltadas principalmente para o aumento da intensidade do trabalho, agora apenas o aumento dela não se mostra suficiente para atender os interesses do capital e, portanto, as estratégias adotadas buscam, na mesma medida, o aumento da intensidade e da extensão da jornada de trabalho para extração da mais-valia. É importante criar um sistema que viabilize o diálogo permanente para solucionar não só os problemas atuais gerados pela tecnologia, mas também os futuros A negociação e, principalmente, a criação de um sistema de diálogo permanente para solucionar os problemas gerados pela tecnologia é a melhor, senão a única, solução. É necessário que participem das negociações representantes de todos os setores da sociedade: dos trabalhadores, das empresas usuárias da tecnologia de gerenciamento, das empresas de tecnologia que criam os softwares, do governo, do legislativo, entre outros. É importante criar um sistema que viabilize o diálogo permanente para solucionar não só os problemas atuais gerados pela tecnologia, mas também os futuros problemas que virão, e eles, inexoravelmente, virão. Ao longo da história do capitalismo essa luta entre flexibilização e regulamentação foi uma constante, com período de maior flexibilização seguido por período de maior regulamentação e vice-versa. Com certeza não será agora que esse ciclo irá terminar. Vivenciamos atualmente uma fase de pouco regulamentação e destruição da regulamentação existente da chamada forma de organização fordista. No entanto, essa fase não se mostrou positiva nem para os trabalhadores, nem para a sociedade e nem mesmo para os capitalistas, tendo em vista que a economia vive há um bom tempo um processo de estagnação profunda entrecortada por períodos de crise. Acredito que estamos entrando numa nova fase de regulamentação: muitos países já regulamentaram as relações trabalhistas dos motoristas e entregadores por aplicativo, a discussão da falta de transparência e assimetria de informações dos softwares de gerenciamento das relações de trabalho é cada vez maior, sendo a principal preocupação da Academia e dos legislativos europeus. O trabalho em home office em plataformas, em empresas off-line ou em governos também já é motivo de discussão. O home office nos casos de empresas não digitais e governos, inclusive, já está regulamentado na maioria dos países. Entretanto, falta ainda muito a ser feito, principalmente no Brasil depois do desmonte da CLT e da inação do governo passado para resolução dos problemas trazidos pela utilização das novas tecnologias. Mas creio que os primeiros passos já estão sendo dados e, provavelmente, acompanharemos o movimento mundial de regulamentação das relações trabalhistas gerenciadas por algoritmos e inteligência artificial. * A mais valia representa a diferença entre o salário pago e o valor produzido pelo trabalho. Dessa maneira, ela pode ser entendida como o trabalho não pago ou ainda trabalho excedente, ou seja, são horas que o trabalhador cumpre/valor que ele gera na produção pelas quais não é remunerado.